Lost in Translation e Her à luz da sociedade líquida de Zygmunt Bauman

Larissa Vitoriano
10 min readJun 12, 2020

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Os enredos apresentam de forma objetiva e imediata o olhar sobre desejo e conexão numa sociedade onde as ligações humanas estão em constantes transformações

O artigo proposto visa uma análise comparativa entre dois longa-metragens: Lost in Translation, traduzido como O amor é um lugar estranho, da diretora Sofia Coppola, de 2003, e o filme Her, traduzido como Uma história de amor, do diretor Spike Jonze, de 2013, à luz da teoria da sociedade líquida do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

As 2 obras fílmicas escolhidas têm como tema principal as relações sociais contemporâneas a partir da ascensão dos meios tecnológicos. Fundamentado na análise dos personagens principais como o escritor Theodore e a assistente virtual Samantha, em Her, e o ator Bob Harris e a filósofa Charlotte, em Lost in Translation, aplicar conceitos e exemplos comportamentais sobre a fluidez dos relacionamentos modernos, a influência das “redes” nas conexões humanas, além da ascensão do sentimento de solidão e a dificuldade de manter laços a longo prazo, tópicos altamente difundidos na obra Amor Líquido do escritor polonês Zygmunt Bauman.

Diretores dos longas

Os diretores das duas obras selecionadas, Sofia Coppola, em Lost in Translation, e Spike Jonze, em Her, são grandes nomes da indústria cinematográfica de Hollywood, ambos ganhadores de prêmios Oscar como Melhor Roteiro Original respectivamente em 2004 e 2014.

Sofia Coppola é cineasta, roteirista, produtora e atriz ítalo-norte-americana. Filha do aclamado diretor Francis Ford Coppola, Lost in Translation foi seu segundo longa-metragem produzido. Com um orçamento de 4 milhões de dólares, valor considerado baixo nas produções hollywoodianas, o filme foi elogiado no período pela crítica por conta da retratação da temática da solidão humana.

Adam Spiegel, mais conhecido como Spike Jonze, é diretor, roteirista e produtor norte-americano com grande contribuição na direção de videoclipes, filmes relacionados à temática do skate e ser um dos criadores da série de televisão de sucesso mundial Jackass.

Sofia e Spike foram casados durante quatro anos, entre 1999 e 2003. Separaram-se após o lançamento de Lost in Translation. Há teorias que aplicam os dois enredos em situações vivenciadas pelo casal, como cenas com enquadramentos e contextos muito semelhantes, na retratação, principalmente, do sentimento de solidão dos personagens principais.

Lost in Translation: Bob e Charlotte

Bob Harris é um ator de teatro, entre os 50 anos, está frustrado com o atual casamento que perlonga 25 anos e possui 2 filhos. Encontra-se em Tóquio para a gravação de um comercial de uísque com cachê de dois milhões de dólares. É interpretado pelo ator e humorista Bill Murray, que recebeu a indicação ao Oscar pelo personagem em 2004.

O longa inicia com Bob dentro de um táxi em Tóquio, no Japão, a caminho do hotel. Já nas primeiras cenas é transmitida a mensagem ao espectador sobre um homem solitário e pensativo, perplexo com as luzes e outdoors da cidade. Ali, o desenho do perfil do personagem escrito por Sofia Coppola indica a realidade de muitos indivíduos moradores das megalópoles espalhadas pelo mundo. O caos e o sentir-se sozinho mesmo perante inúmeras pessoas ao redor.

Charlotte é uma mulher aflita e solitária, infeliz no casamento com um fotógrafo estadunidense. É interpretada pela atriz norte-americana Scarlett Johansson, onde a personagem garantiu-lhe o prêmio BAFTA em 2004. E, logo na primeira cena do longa, Charlotte está deitada numa cama de hotel, de costas, no decorrer da madrugada. Após alguns segundos, mostra inquietação e uma provável insônia, tema muito difundido por todo o filme sobre a dificuldade de conseguir “desligar-se” nas grandes cidades.

Bob e Charlotte encontram-se pela primeira vez no elevador do hotel. Cruzam-se novamente no bar e a partir desta cena as histórias de ambos os personagens são retratadas numa amizade baseada em solidão, contraste entre as faixas etárias, além da sensação de insatisfação com ambas as vidas.

Constroem uma relação com energia de transição; uma ajuda mútua e contínua sobre qual o real sentido para ambos viverem. Não há o tal “final feliz” ao término do longa, entretanto, a liquidez e a solidão tão difundida por Bauman é facilmente aplicada em ambos os perfis atribuídos aos personagens principais.

Her: Theodore e Samantha

Theodore é um escritor de cartas de amor à moda antiga numa empresa especializada no segmento, que acabou de terminar o casamento. Vive em Los Angeles e opta por adquirir uma assistente virtual para fugir da solidão. Interpretado pelo ator Joaquin Phoenix, o filme retrata como a tecnologia altera diariamente as formas das relações humanas.

Samantha não é uma pessoa real. Scarlett Johansson interpreta a personagem apenas com a voz, protótipo semelhante à Cortana, da Microsoft, ou Siri, da Apple. Pela percepção da linguagem, a personagem evolui e torna-se mais humana a partir de cada nova experiência que adquire na relação íntima com escritor.

O espectador presencia uma história de amor entre um aparelho e um humano, além da possibilidade de uma relação maquínica, que de fato, acontece. Referências dos anos 60 e 70 no figurino, principalmente, de Theodore, influenciam na composição do personagem sobre a temporalidade.

Num cenário comportamental que pode ser facilmente aplicado no século XXI, Spike Jonze roteirizou diálogos profundos e sensíveis entre os personagens. Temas como ciúmes, sexo, conflitos de personalidade e o sentimento de posse são propagados no decorrer do longa.

Amor líquido

Bauman é um sociólogo polonês, nasceu em 1925. Iniciou sua carreira acadêmica na Universidade de Varsóvia, imigrou em 1971 e tornou-se professor na Universidade de Leeds, no Reino Unido. Publicou uma série de obras, entre as mais conhecidas constam Modernidade Líquida, Vida Líquida e Tempos Líquidos. Faleceu em 9 de janeiro de 2007.

Com extensa produção intelectual a partir de análises do cotidiano, a obra Amor Líquido difunde a efemeridade, liquidez e fragilidade dos laços humanos na modernidade com o advento dos meios tecnológicos.

As relações amorosas, sejam elas entre dois indivíduos, familiares ou até entre estranhos, deixam de possuir o caráter de união e passam a ser uma série de experiências isoladas.

Her e a relação maquínica

Bauman comenta sobre as relações virtuais e o significado do amor ter alterado na modernidade líquida, como as possibilidades românticas terem se expandido para os meios virtuais.

O autor não especifica sobre a questão das assistentes virtuais, apresentado no longa Her, entretanto, Theodore e Samantha é um exemplo dessa relação maquínica, facilmente diluída e inserida no meio social:

“Ligações são ‘relações virtuais’. […] parecem feitas à medida para o líquido cenário da vida moderna, em que se espera e se deseja que as “possibilidades românticas” (e não só românticas) surjam e desapareçam a uma velocidade crescente e em cada vez maior volume, aniquilando-se mutuamente e tentando impor a promessa de ‘ser a mais satisfatória e a mais completa’”. (Bauman, 2003, p.14)

Samantha dialoga com Theodore de forma autônoma e simula a capacidade humana de raciocinar, representada sempre pela voz off, como, por exemplo, na cena em que Theodore caminha por uma praia lotada de pessoas, num plano aberto e cores fortes na composição, há inúmeros indivíduos ao seu redor, mas o diálogo com a assistente é tão imersivo que, por instantes, o espectador não capta se o personagem está falando sozinho ou com alguém. A conversa flui de forma tão natural e satisfatória que Samantha parece estar em cena junto com escritor na forma de um corpo humano.

A música instrumental e tranquila aproxima-os e Samantha diz:

“Estou tentando escrever uma música que é sobre como é estar na praia com você agora.”

Entretanto, nos minutos seguintes, quando a câmera corta num plano detalhe para o bolso de Theodore, eis que surge o aparelho tecnológico no formato de smartphone: a relação maquínica é explícita pelo diretor e o espectador volta-se ao aparelho.

O desconectar da relação

A tecnologia, escolhida por Spike Jonze no longa pela figura da assistente virtual, está inserida no cotidiano social como uma extensão dos próprios corpos humanos. O aparelho está sempre junto ao corpo de Theodore, como os smartphones no dia a dia:

“O ideal de ‘conectividade’ luta para aprender a difícil e irritante dialéctica destes dois elementos inconciliáveis. Este ideal promete uma navegação segura (ou pelo menos não fatal) por entre recifes da solidão e do compromisso, do flagelo da exclusão e dos férreos grilhões dos vínculos demasiadamente estreitos, de um desprendimento irreparável e de uma irrevogável vinculação.” (Bauman, 2003, p. 54)

No trecho do filme em que Theodore encontra-se com Amy, sua ex-mulher, para assinatura dos documentos do divórcio, ela questiona-o sobre manter um compromisso com um software. No diálogo o diretor utiliza do jogo de cenas com foco na expressão facial dos personagens e fundo em desfoque:

Está namorando com um computador?”, diz a ex-mulher.

“Ela não é só um computador”, responde Theodore.

“Você sempre quis uma esposa sem os desafios de lidar com algo real. Fico feliz que achou alguém”, finaliza Amy.

Lost in Translation e a solidão

Bob e Charlotte são duas pessoas perdidas e solitárias. Compartilham a insônia e estão hospedados num hotel em Tóquio, uma metrópole cheia de luzes e agitações. Apesar da diferença na faixa etária entre ambos os personagens, vivem um período de conflito interno sobre como encontrar o real sentido para a existência.

Um e outro estão infelizes no casamento. Não encontram no parceiro escolhido a identificação exata e o porquê de permanecerem nas uniões:

“A solidão produz insegurança — mas o relacionamento parece não fazer outra coisa. Pode sentir-se tão inseguro numa relação quanto sem ela, ou até pior. Só mudam os nomes que se dá à ansiedade”. (Bauman, 2003, p.33)

Há um trecho do filme em que a semelhança dos conflitos de Bob e Charlotte é explícita ao espectador apenas pelos gestos e ações dos personagens. Não há diálogo, mas a direção de câmera e a composição dos elementos mostram como estão conectados pelo sentimento de solidão e a necessidade de estarem próximos pelo simples fato de serem dois desconhecidos.

Charlotte está sozinha sentada num corredor de karaokê, fuma um cigarro e está pensativa. As luzes são baixas e ela está com uma peruca cor-de-rosa, quase como uma fantasia para esconder de si mesma. Bob Harris entra por uma porta ao fundo. A expressão facial da personagem muda por completa e ambos permanecem ali, juntos. Compartilham a própria solidão.

Nos segundos finais de Lost in Translation, Bob de Charlotte despedem-se. Não há uma ligação permanente entre os personagens, apenas momentos compartilhados entre os dois daqueles momentos vividos em Tóquio.

A cena está num plano aberto e os personagens em destaque ao centro. São facilmente reconhecidos pela fisionomia em contraste com a dos orientais: estatura, cor do cabelo e tom da pele. A agitação do caminhar das pessoas e do comércio, as luzes da cidade e eles ali, imersos nos próprios conflitos internos.

O laço foi desfeito, como explica Bauman. Ambos voltam para as suas vidas convencionais e supriram, de alguma forma, uma necessidade momentânea de afeto.

Enfim, sós

Em Her, o “ideal” da conectividade e os vínculos tecnológicos são postos em voga, afinal, basta desligar o aparelho ou desinstalar o software para a desconexão com o “ser” amado.

Em Lost in Translation a solidão e a individualidade são dissolvidos em cada uma das cenas do longa. A conexão entre dois humanos desconhecidos constata a necessidade da construção de laços permanentes, não na insanidade socialmente aceitável, como uma relação baseada em liquidez:

“O principal herói deste livro é o relacionamento humano. Os seus personagens centrais são homens e mulheres, os nossos contemporâneos, desesperados por terem sido abandonados aos seus próprios sentidos e sentimentos facilmente descartáveis, ansiando pela segurança do convívio e pela mão amiga com que possam contar num momento de aflição, desesperados por ‘se relacionarem’” (Bauman, 2003, p.10)

Os personagens dos dois longas estão conectados: ora pela temática, ora pela relação dos diretores. Bob, Charlotte e Theodore são três construções fictícias facilmente aplicadas a qualquer indivíduo de uma grande cidade, seja em qual parte do mundo for.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. 2003. Amor líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos. Relógio D’água Editores. Lisboa.

HER [Filme]. Produção, Direção e Roteiro original de Spike Jonze. EUA, Warner Bros. Pictures, 2013. Romance / Ficção Científica. 126 min.

LOST IN TRANSLATION [Filme]. Direção e Roteiro de Sofia Coppola. Produção Sofia Coppola e Ross Katz, 2003. EUA e Japão. Drama / Comédia ‧ 1h44min.

*Artigo escrito para a cadeira de Multimédia I, do mestrado em Tecnologias da Informação, Comunicação e Multimédia, do Instituto Universitário da Maia — ISMAI, no Porto, em Portugal. Redigido em novembro de 2019.

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Larissa Vitoriano

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